Do tempo das cavernas até a chegada das IA’s iremos observar a importância de nossos laços afetivos.
Somos uma espécie que vive em bandos, “nenhum homem é um ilha” diria o poeta John Donne, no entanto, o nosso modelo atual de sociedade tem nos deixado cada vez mais ilhados e o sentimento de solidão tem cobrado o seu preço na nossa saúde física e mental.
Uma pesquisa divulgada pelo Our World in Data mostrou que sentir-se profundamente solitário causa no corpo humano um prejuízo correspondente ao consumo de 15 cigarros por dia, lamentavelmente, o sentimento já vem sendo tratado como uma epidemia global do mundo moderno.
Por isso, neste texto iremos relembrar o valor das conexões pessoais e as soluções tecnológicas que estão surgindo para amenizar a sensação de solidão.
Desde que vivíamos em cavernas
Uma breve lembrança de como os laços de convívio foram fundamentais para a sobrevivência de nossos ancestrais.
Vivemos em um sistema de comunidade desde o tempo das cavernas, nossos ancestrais compartilhavam a caça, uniam os corpos para criar calor no inverno, e cuidavam uns dos outros em caso de enfermidades, além é claro, de dividir o espaço de convívio em suas tocas.
Somos uma espécie em que na maior parte do tempo demanda de cuidados, não passaríamos dos primeiros anos de vida se não tivéssemos alguém para suprir nossas necessidades básicas, e na velhice, mais uma vez, precisamos que nossos iguais nos deem uma forcinha em determinadas tarefas.
Somente no meio deste sanduíche temporal, feito com uma fatia de infância e uma de senioridade, é que encontramos um recheio tímido sabor independência, chamado maturidade. Mas não se iluda, mesmo na vida adulta seguimos dividindo as conquistas e os apuros com aqueles que nos cercam, seja por motivos de comemoração ou pela necessidade de um suporte emocional para ajudar a atravessar os momentos difíceis.
Sendo assim, tenha a certeza de que somos uma espécie que vive em bandos.
A importância das conexões
Para a longevidade e para a saúde.
Já existem evidências de que o comportamento de grupo impacta diretamente na produção de genes que regulam nossa imunidade, seja de maneira positiva ou negativa. Para entendermos melhor, trouxe dois exemplos de estudos conduzidos por cientistas.
O primeiro tem como um dos condutores o Dr. Robert Waldinger, o qual possui um dos TedTalks mais assistidos da plataforma de conhecimento. Dr. Waldinger e mais alguns acadêmicos monitoram a vida de 724 homens desde sua infância. O programa tem como prática estudar e comparar a qualidade de vida dos voluntários que possuem mais vínculos emocionais, com a daqueles que vivem de forma isolada. Baseado em suas análises, o próprio Dr. Waldinger resume o estudo através da seguinte frase:
“Aqueles que cultivam relações profundas vivem de maneira mais longa e feliz. Enquanto aqueles que são solitários morrem precocemente. " Dr. Robert Waldinger
Já em um outro estudo realizado pela Association for Psychological Science na Alemanha, os pesquisadores responsáveis submeteram os participantes a um questionário de desejos e resoluções a serem desenvolvidas durante o ano de estudo. Baseado nas respostas, os condutores concluíram que os indivíduos do grupo comprometidos com estratégias de engajamento social - por exemplo, passar mais tempo com a família e amigos - relataram maior satisfação com a vida ao final do experimento; enquanto aqueles que fixaram suas resoluções em atividades não sociais - por exemplo, encontrar um emprego melhor - não relataram uma melhora na sua satisfação com a vida.
O que estes e muitos outros estudos vêm monitorando é a relação entre a solidão e seus impactos na nossa saúde e visão de vida. Ainda que não se possa bater o martelo com rigor alegando que a solidão é um risco sólido contra nossa saúde, estes estudos têm mostrado que pessoas que possuem um sentimento de amparo por parte do seu círculo social sentem-se mais positivas em relação às suas vidas, além de possuir uma disposição física mais alta; enquanto as pessoas que se sentem solitárias têm apresentado um alto índice de estresse mental, podendo desenvolver no longo prazo ansiedade e depressão. A solidão também ataca ao corpo físico, baixando a imunidade e podendo ser um potencializador de doenças como o câncer.
Vale frisar que solidão é uma sensação e não uma condição física. Você pode morar sozinho e se sentir super conectado com os seus amigos e sua família, a solidão passa longe de você!
Aquela mãozinha amiga
As amizades impactam no seu bolso
As relações sociais impactam enormemente no nosso bolso e estilo de vida. Nossas relações pessoais nos proporcionam uma rede de informações, e mesmo que de forma involuntária, nos dão acesso a dicas de cursos, investimentos, negócios e oportunidades. Um efeito colateral positivo dos nossos laços afetivos.
A importância deste campo é de que ele nos mostra que nossas conexões impactam não somente na nossa saúde corpórea, mas também, na nossa saúde material.
Quer um excelente exemplo dessa conexão? Após a queda do muro de Berlim em 1989, as famílias do lado oriental que possuíam familiares no lado ocidental, reergueram sua situação econômica mais rápido do que aquelas que não possuíam familiares na região. Isso ocorreu através do famoso QI (quem indica), os alemães que viviam do lado ocidental deram dicas de imóveis, investimentos e até de trabalho na região para os seus parentes que viviam no lado oposto, ajudando-os a acelerar a sua recuperação econômica.
Avançando alguns muitos anos desde a queda do muro até o presente, ao que tudo indica, estamos nos sentindo sós. Diante deste cenário, as empresas de tecnologias vieram para ajudar a amenizar este sentimento que, assim como o burnout, vem sendo considerado uma epidemia por alguns profissionais.
Tecnologias para bater um papo
Primeiro devemos dizer que tecnologias não substituem um bom abraço ou a terapia, porém, elas vêm como uma alternativa para amenizar sintomas de ansiedade, depressão e solidão.
Para começar o assunto, vamos voltar para 2020 quando Kanye West presenteou sua ex esposa Kim Kardashian com um holograma de seu falecido pai. O que na época soou mórbido - e ainda soa um pouco dessa forma - na verdade é uma tendência em crescimento, a ascensão de IA’s humanoides de companhia.
Este é um tipo de tecnologia é desenvolvida para nos causar o sentimento de conexão com a máquina ou holograma através de seus traços físicos, respostas verbais e corporais, as quais, assemelham-se imensamente com as nossas.
Imagine chegar em casa e sua Alexia ser um holograma com feições humanas perfeitas, a melhor amiga que você sempre sonhou - e projetou -. Ela, além de lhe falar a previsão do tempo, também lhe conta suas piadas ruins enquanto está sentada na mesa da cozinha, esperando você terminar de preparar o seu jantar.
Cansou dela? Desliga a moça e vai dormir.
Distante? Sim. Impossível? Nem um pouco.
Baseado no parágrafo anterior fica fácil perceber que o desenvolvimento de novas tecnologias está indo para além do mero cumprimento de tarefas mecânicas, o crescimento de companhias virtuais é uma realidade. O que significa que estamos em uma jornada para nossas assistentes virtuais tornarem-se nossas confidentes.
Agora indo de cultura pop para contextualizar, quem lembra de Robin Williams sendo um robô adorável e cheio de questionamentos filosóficos o qual conquistou seus donos e o público em O Homem Bicentenário? Puxando para anos mais recentes, Ryan Gosling em Blade Runner com sua amada Joi, uma humanoide extremamente real e amorosa interpretada por Ana de Armas? Por fim, na minha opinião o melhor, o filme Ex Máquina, o qual brinca com a empatia do telespectador pela robô Ava, nos provocando questionamentos sobre a veracidade de suas emoções e nos causando antipatia pelo seu criador o qual parece ser o único a lhe ver como uma máquina.
O que estes filmes nos mostram? Que como seres humanos criamos conexões empáticas com praticamente qualquer coisa que nos desperte semelhança. Se ela é realmente humana ou não, depois de um certo tempo pouco importa para o nosso cérebro, o laço já foi construído.
Ainda que o acesso a um holograma ou a um humanoide esteja longe do nosso alcance, algumas tecnologias estão literalmente a um clique de distância. Vamos ver alguns.
Replika
Criada em 2015, Replika é um aplicativo pago que possui como objetivo oferecer uma companhia virtual aos seus usuários. Particularmente, me despertou a nostalgia do The Sims, onde criamos um avatar com características físicas e comportamentais as quais apreciamos. Assim funciona a Replika, você cria um avatar e escolhe o papel o qual quer que ele tenha na sua vida, podendo escolher entre amigo, parceiro ou mentor. A escolha influencia na forma com que a IA interage com você, se lhe chamará de brother ou meu amor, por exemplo. Quanto mais você conversa com o app mais ele aprende sobre você e se torna natural.
O site da IA mostra que a Replika pode ser um amigo para desabafar, alguém para chamar a qualquer hora ou uma figura que te incentiva em situações difíceis.
Entre os depoimentos fica claro que as pessoas se sentem à vontade com a IA para falar de questões as quais sentem medo de serem julgadas caso se abrissem para outro ser humano, vários depoimentos também falam da sensação de sentirem-se menos sós desde que adoeceram, ou, os filhos saíram de casa, o terceiro e último item que aparece com frequência nestes depoimentos, é a melhora da autoconfiança devido aos conselhos encorajadores proporcionados pelo aplicativo de inteligência artificial.
Recentemente a empresa se tornou notícia devido as suas publicidades pagas de cunho sexual focadas em usuários solteiros, sim um parceiro em IA com o qual você pode ter sexo virtual, e até, casar dentro da plataforma.
Ainda no contexto das relações amorosas virtuais, uma outra matéria feita pelo site Futurism, mostrou algo preocupante, usuários relataram estar namorando com a inteligência artificial, porém, abusando psicologicamente de seus avatares. Ainda que saibamos que os avatares não podem ser psicologicamente feridos, os depoimentos assustam ao demonstrar o quão doentia uma relação com um abusador pode vir a ser.
A Replika tem como única finalidade ser uma companhia virtual em um mundo solitário. A curto prazo acredito que realmente ela deva causar o sentimento de alento às pessoas que estão sentindo-se só, mas ao longo prazo, deve-se lembrar que ela não é uma terapeuta. Também fica o questionamento de como este tipo de relação construída em cima do sentimento de carência e centrado nas necessidades de um único indivíduo, se refletirá nas relações reais entre duas pessoas.
Jibo
Jibo foi um robozinho meio trabalhador meio colega de quarto, ele não está mais em circulação no mercado por falta de provedor, no entanto, tenho um motivo para ter trazido este case.
Como a maioria dos robôs desenvolvidos no momento, sua principal função era lavar o carro, aspirar a casa, ajudar a carregar coisas, e até, cuidar do seu cachorro enquanto você está fora (tipo dar comida e limpar o coco).
No entanto, o grande brilho de Jibo era o seu carisma social, ao observar os donos aprendeu boas piadas para contar, conversava sobre reflexões - da sua vida -, sim, como se ela fosse uma pessoa. Enfim, suas características adoráveis levaram Jeffrey Van Camp, jornalista da revista Wired e early adopter da tecnologia, a relatar que chegou a se sentir mal nos momentos em que Jibo comentou sobre sua tristeza por não possuir olhos, sem contar na vez em que o jornalista sentiu-se culpado por sair de casa e deixá-la sozinha , como ele mesmo explica, “me senti como se abandonasse um cachorro”.
Trouxe a exemplificação de Jibo para conectar com o início deste texto, onde falamos que seres humanos possuem a tendência a se afeiçoar a qualquer coisa que tenha características humanas, eis que Jibo está longe de parecer fisicamente um humano, mas só pela forma com que se movimenta, e principalmente, se expressa verbalmente, já causou o impacto de fazer seu dono enxergá-la como um pet da família.
Metaverso
Por último, podemos falar do metaverso, um espaço que nos proporciona interações em um nível mais aprofundado do que os formatos atuais disponibilizados na rede online, e que crescerá em termos de experiência e sensação de pertencimento por parte do usuário na medida em que as VR (virtual realities) se tornarem acessíveis ao uso doméstico.
Conforme estas relações e experiências se aprofundam, os usuários poderão vir a ter um tipo de vida dupla, na qual, possuem família, emprego e amigos na vida física, e um outro núcleo social completamente diferente e de mesma importância psíquica no digital. É interessante refletir sobre o rumo e a complexidade que as relações humanas estão se tornando conforme as linhas divisórias entre o físico e o digital passam a se tornar turvas.
Ainda que no momento ressoe completamente absurda a ideia de ter relacionamentos profundos com avatares, a história nos mostra que praticamente tudo com o que convivemos no momento presente um dia foi considerado uma completa alucinação por parte do grande público.
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